![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjqOykJn-Jx_VvO9b7a0gJlaDOZ1cqtcF5bPZe-hFIO-0X0r_P251w2_yGzAxI4CvKv3W2WHJKzT060MFaDyIs88cOcCQnhwcZLh6KpU30a5bel4ellsAff__VoYK6LYij4QkPID5iz1pg/s1600/crime+e+castigo.jpg)
Para comentar a obra do mês e do ano, nada melhor do que um dos melhores críticos literários, o norte-americano Harold Bloom, retirado de seu livro Como e Por que ler:
Raskolnikov, estudante cheio de ressentimento, alimenta a fantasia de assassinar uma velha gananciosa, dona de uma casa de penhores que o explo
No intricado enredo, Raskolnikov apaixona-se por Sônia, começa a perceber que Porfírio sabe que ele é culpado e, cada vez mais, constata no brilhante Svidrigailov o seu próprio potencial de degradação. O leitor depreende em Raskolnikov uma acentuada divisão, entre o ímpeto de arrependimento e a convicção de que o seu ser napoleônico necessita de plena expressão. O próprio Dostoiévski encontra-se, sutilmente, dividido, pois Raskolnikov só se entrega ao arrependimento no epílogo do romance.
Dostoiévski acreditava em um cristianismo que ainda está por acontecer: um tempo em que nos amaríamos uns aos outros, altruisticamente, e nos sacrificaríamos uns pelos outros, como o faz Sônia, em
Dostoiévski, essencialmente, um autor trágico, e não um moralista épico, discordava de Tolstoi. Às vezes, reflito sobre a coincidência de Dostoiévski, aos vinte e três anos, ter deixado o exército, para seguir a carreira literária, e de Rodion Raskolnikov ter vinte e três anos, no verão terrível em que, gratuitamente, mata duas mulheres, de modo a engrandecer a visão napoleônica que ele tem do seu próprio ser. Existe uma afinidade tácita entre a recusa de Raskolnikov de se desviar de sua auto-avaliação e a busca heróica de Dostoiévski de escrever ficções eternas, culminando em
Leitores abertos à obscuridade experimental de Finais felizes não condizem com obras que retratam niilistas inveterados, como Svidrigailov. Quando penso em
A meu ver, existe uma grande afinidade entre Raskolnikov e o assassino Macbeth, assim como no caso de Svidrigailov e Edmundo (em
cativante — Macbeth é vilão e herói, e não um comparsa de lago e Edmundo.
Dostoiévski segue Shakespeare ao identificar a imaginação do leitor com Raskolnikov, assim como Macbeth arrebata-nos a imaginação. Porfírio, inspetor de polícia que, de modo brilhante, tortura Raskolnikov com a incerteza, apresenta-se como cristão, mas, nitidamente, desagrada Dostoiévski, para quem a nêmese de Raskolnikov é um “mecanicista” ocidentalizado, um manipulador da psique tão atormentada de Raskolnikov. Sônia encontra-se, espiritualmente, muito além de nós, leitores, no
tocante à dimensão transcendental; do mesmo modo, o incrível Svidrigailov excede-nos em seu demonismo. Não resta alternativa, senão seguirmos a consciência de Raskolnikov, assim como acompanhamos Macbeth em sua viagem às trevas. torna cúmplices dos assassinatos cometidos por seus heróis-viloes. segundo a qual a tragédia nos livra de emoções que não propiciam o bemestar social, Shakespeare e Dostoiévski têm intenções mais soturnas a nosso respeito.
A fantasmagoria torna-se realidade quando o jovem mata não apenas a anciã, mas também a meia-irmã demente da própria anciã. Depois que os crimes são cometidos, o destino de Raskolnikov é traçado nos encontros mantidos com os três personagens principais do romance. A primeira é Sônia, jovem pura e angelical que se entregara à prostituição como meio de prover aos irmãos indigentes. O outro é Porfírio Petrovich, esperto investigador de polícia, nêmese implacável de Raskolnikov. O terceiro é o mais fascinante dos três, Svidrigailov, monumento ao solipsismo niilista e à volúpia.continua sendo o melhor dos romances de suspense, quase um século e meio após ter sido lançado. É preciso ler o romance — embora seja tão angustiante — porque, conforme ocorre com Shakespeare, trata-se de uma obra que altera a nossa consciência. Ainda que muitos de nós neguem o niilismo das grandes tragédias de sangue shakespearianas — Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth —, as mesmas constituem a origem inegável dos grandes niilistas de Dostoiévski: Svidrigailov; Stavrogin, em Os Possessos (Os Demônios); e o velho Karamazov, o pai em Os Irmãos Karamazov. Jamais saberemos qual era a verdadeira crença (ou descrença) de Shakespeare, ao passo que Dostoiévski se torna um reacionário do clericalismo, a um ponto quase inconcebível. Porém, especialmente no caso de Crime e Castigo, devemos seguir a máxima de D. H. Lawrence: confia no conto, não no contista.Crime e Castigo. Nesse tempo cristão, que estaria além da civilização conforme por nós é conhecida, seria possível escrever romances? Presumivelmente, deles não necessitaríamos. Tolstoi, que queria ver Dostoiévski como uma Harriet Beecher Stowe da Rússia, insistia em preferir A Cabana do Pai Tomás a Rei Lear.Os Irmãos Karamazov. O arrependimento de Raskolnikov é sincero, no Epílogo pouco convincente do romance, quando o personagem se rende à figura de Madalena, encarnada por Sônia, esperando uma ressurreição, da morte à salvação, conforme se dá com Lázaro. Mas como a recalcitrância trágica de Raskolnikov está, inextricavelmente, presa ao ímpeto heróico de Dostoiévski, no sentido de escrever grandes tragédias, o leitor não se convence muito dessa tardia humildade cristã da parte de Raskolnikov. Dostoiévski é mestre em introduções, perito em desenvolvimento da ação, mas, surpreendentemente, um tanto ou quanto fraco em conclusões considerando-se que seu temperamento apocalíptico (ao que se supõe) deveria torná-lo bem versado em questões finais.Crime e Castigo serão levados a refletir sobre a possibilidade de uma divisão não apenas em Raskolnikov mas no próprio Dostoiévski, e podem chegar à conclusão de que a recalcitrância do autor, de ordem dramática, e não moral-religiosa, faz com que ele relute em transformar Raskolnikov em um ser redimido.Crime e Castigo, de súbito, vem-me à mente Svidrigailov, e estremeço diante da explicação que ele oferece, no momento em que puxa o gatilho e se suicida, dizendo: “Para a América”. Temos aqui o pós-niilista (niilista apenas não basta) que afirma a Raskolnikov a existência da Eternidade; é como um banheiroimundo, em meio aos campos russos, infestado de aranhas. O pobre Raskolnikov, diante da terrível realidade encarnada pelo mais que derrotado Svidrigailov, pode ser perdoado por almejar uma visão mais confortadora, a despeito de nela acreditar ou não.Rei Lear), este último, outro sensualista frio. Nascido em 1821, Dostoiévski associa o perturbador Svidrigailov a Lord Byron, que se tornara imensamente popular na Rússia, pela ação de Pushkin, à época o “poeta nacional” (e que precedeu Dostoiévski e Turgenev na admiração por Shakespeare). A volúpia criminosa de Svidrigailov, instigada, especialmente, por meninas, é uma degradação das tendências de Edmundo e Byron. Mas Raskolnikov, apesar de tudo, está longe de se tornar um Svidrigailov, assim como o assassino — embora sempreNós talvez não assassinássemos velhotas ou monarcas bonachões; porém, como, até certo ponto, somos Raskolnikov e Macbeth, dependendo das circunstâncias, quem sabe, seríamos capazes de fazê-lo? Assim como Shakespeare, Dostoiévski nosMacbeth e Crime e Castigo são tragédias deveras assustadoras, que não nos purgam de qualquer sentimento de compaixão, quanto mais de terror. Revertendo a idéia aristotélica da catarse (que possui natureza sociológica e médica), Macbeth, que faz com que Crime e Castigo ultrapasse o ponto de nos deixar deprimidos, enquanto vivemos aquele inóspito verão em Petersburgo, no qual o pesadelo fantasmagórico se transforma em realidade. Todas as paredes parecem pintadas de um tom mórbido de amarelo, e o horror de uma metrópole moderna é retratado com uma intensidade que faz lembrar Baudelaire, ou Dickens, nos momentos menos afáveis. Chegamos a sentirCrime e Castigo — torna-se: o que leva Raskolnikov a se tornar um assassino? O personagem tem uma série de qualidades positivas; no fundo, seus impulsos são decentes, verdadeiramente, humanos. Espanta-me a noção do eminente romancista contemporâneo italiano Alberto Moravia, de que Raskolnikov seria um precursor dos comissários de Stalin, mais conhecidos como opressores de terceiros do que como indivíduos propensos à auto-recriminação.precede os crimes por ele cometidos. Duvido, porém, que ele encarne uma versão grosseira da vontade de sofrer constatada em Sônia. Tampouco é Raskolnikov um duplo, passivo, de Svidrigailov, cujo sadismo malévolo é um véu que encobre o “Para a América” — ou seja, o suicídio. É, praticamente, impossível separar Raskolnikov de Dostoiévski, que, aos vinte e oito anos, esteve oito meses encarcerado em cela solitária, por pertencer a um grupo político radical. Condenados à morte, Dostoiévski e companheiros chegaram a se ver diante de um pelotão de fuzilamento, recebendo a comutação da pena na última hora. Seguiram-se, então, quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, período em que Dostoiévski se tornou um reacionário consumado, além de monarquista, e devoto seguidor da Igreja Ortodoxa Russa.crimes, e o tribunal tê-lo considerado, pelo menos, em parte, mentalmente desequilibrado, especialmente nos momentos em que cometera os assassinatos. Não consigo ver como um leitor comum, de mente aberta, poderia definir, com um mínimo grau de certeza, a motivação das transgressões de Raskolnikov, no sentido corrente da palavra “motivação”. A perversidade, tão arraigada em Svidrigailov, lago e Edmundo, ocupa pouco espaço nas psiques de Raskolnikov e Macbeth, o que torna a queda desses personagens ainda mais aterrorizante. Tampouco adianta-nos procurar em Raskolnikov e Macbeth indícios do Pecado Original. Ambos sofrem de uma imaginação intensamente profética. Quando se vêem frente a uma ação que lhes oferece a possibilidade de ganho pessoal, atiram-se a ela, imaginam ter cometido os crimes, e sofrem da culpa decorrente. Quando a imaginação é assim tão intensa e a consciência tão culpada, o assassinato,Crime e Castigo não deixa de ser um tanto tendencioso, falha sempre presente em Dostoiévski, autor aguerrido, cuja perspectiva contundente fica sempre explícita em tudo aquilo que escreve. Seu propósito é soerguer-nos, como Lázaro, do nosso niilismo ou ceticismo, e converter-nos à Ortodoxia. Eminentes escritores, como Tchekhov e Nabokov, não o toleravam; para tais escritores, Dostoiévski não era um artista, mas um pseudoprofeta de voz estridente. Do meu ponto de vista, Crime e Castigo, a cada leitura, é uma provação, de uma intensidade terrível, e um tanto perniciosa, como se fosse um Macbet composto pelo próprio Macbeth. Raskolnikov nos magoa porque não conseguimos dele nos livrar. Sônia me parece bastante intolerável — nem mesmo Dostoiévski foi capaz de criar um santo que fosse racional. Sônia me faz estremecer. Mas é extraordinário que Dostoiévski nos tenha oferecido dois personagens coadjuvantes tão expressivos como Porfírio, o inspetor de polícia que se torna grande antagonista de Raskolnikov, e Svidrigailov, figura extremamente plausível, dotada de um charme infindo. Porfírio, experiente investigador, é uma espécie de pragmatista, um utilitário que acredita na possibilidade do bem maior, para a maioria, através do exercício da razão. Suponho que qualquer leitor, inclusive eu, haveria de preferir a companhia de Porfírio à do perigoso Svidrigailov para um jantar, mas acho que Dostoiévski preferiria Svidrigailov.
Obs.: indico a edição da Editora 34, com tradução do Professor Paulo Bezerra. É a única tradução diretamente do russo para o português - as demais são feitas do francês. É uma excelente edição!
A fantasmagoria torna-se realidade quando o jovem mata não apenas a anciã, mas também a meia-irmã demente da própria anciã. Depois que os crimes são cometidos, o destino de Raskolnikov é traçado nos encontros mantidos com os três personagens principais do romance. A primeira é Sônia, jovem pura e angelical que se entregara à prostituição como meio de prover aos irmãos indigentes. O outro é Porfírio Petrovich, esperto investigador de polícia, nêmese implacável de Raskolnikov. O terceiro é o mais fascinante dos três, Svidrigailov, monumento ao solipsismo niilista e à volúpia.continua sendo o melhor dos romances de suspense, quase um século e meio após ter sido lançado. É preciso ler o romance — embora seja tão angustiante — porque, conforme ocorre com Shakespeare, trata-se de uma obra que altera a nossa consciência. Ainda que muitos de nós neguem o niilismo das grandes tragédias de sangue shakespearianas — Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth —, as mesmas constituem a origem inegável dos grandes niilistas de Dostoiévski: Svidrigailov; Stavrogin, em Os Possessos (Os Demônios); e o velho Karamazov, o pai em Os Irmãos Karamazov. Jamais saberemos qual era a verdadeira crença (ou descrença) de Shakespeare, ao passo que Dostoiévski se torna um reacionário do clericalismo, a um ponto quase inconcebível. Porém, especialmente no caso de Crime e Castigo, devemos seguir a máxima de D. H. Lawrence: confia no conto, não no contista.Crime e Castigo. Nesse tempo cristão, que estaria além da civilização conforme por nós é conhecida, seria possível escrever romances? Presumivelmente, deles não necessitaríamos. Tolstoi, que queria ver Dostoiévski como uma Harriet Beecher Stowe da Rússia, insistia em preferir A Cabana do Pai Tomás a Rei Lear.Os Irmãos Karamazov. O arrependimento de Raskolnikov é sincero, no Epílogo pouco convincente do romance, quando o personagem se rende à figura de Madalena, encarnada por Sônia, esperando uma ressurreição, da morte à salvação, conforme se dá com Lázaro. Mas como a recalcitrância trágica de Raskolnikov está, inextricavelmente, presa ao ímpeto heróico de Dostoiévski, no sentido de escrever grandes tragédias, o leitor não se convence muito dessa tardia humildade cristã da parte de Raskolnikov. Dostoiévski é mestre em introduções, perito em desenvolvimento da ação, mas, surpreendentemente, um tanto ou quanto fraco em conclusões considerando-se que seu temperamento apocalíptico (ao que se supõe) deveria torná-lo bem versado em questões finais.Crime e Castigo serão levados a refletir sobre a possibilidade de uma divisão não apenas em Raskolnikov mas no próprio Dostoiévski, e podem chegar à conclusão de que a recalcitrância do autor, de ordem dramática, e não moral-religiosa, faz com que ele relute em transformar Raskolnikov em um ser redimido.Crime e Castigo, de súbito, vem-me à mente Svidrigailov, e estremeço diante da explicação que ele oferece, no momento em que puxa o gatilho e se suicida, dizendo: “Para a América”. Temos aqui o pós-niilista (niilista apenas não basta) que afirma a Raskolnikov a existência da Eternidade; é como um banheiroimundo, em meio aos campos russos, infestado de aranhas. O pobre Raskolnikov, diante da terrível realidade encarnada pelo mais que derrotado Svidrigailov, pode ser perdoado por almejar uma visão mais confortadora, a despeito de nela acreditar ou não.Rei Lear), este último, outro sensualista frio. Nascido em 1821, Dostoiévski associa o perturbador Svidrigailov a Lord Byron, que se tornara imensamente popular na Rússia, pela ação de Pushkin, à época o “poeta nacional” (e que precedeu Dostoiévski e Turgenev na admiração por Shakespeare). A volúpia criminosa de Svidrigailov, instigada, especialmente, por meninas, é uma degradação das tendências de Edmundo e Byron. Mas Raskolnikov, apesar de tudo, está longe de se tornar um Svidrigailov, assim como o assassino — embora sempreNós talvez não assassinássemos velhotas ou monarcas bonachões; porém, como, até certo ponto, somos Raskolnikov e Macbeth, dependendo das circunstâncias, quem sabe, seríamos capazes de fazê-lo? Assim como Shakespeare, Dostoiévski nosMacbeth e Crime e Castigo são tragédias deveras assustadoras, que não nos purgam de qualquer sentimento de compaixão, quanto mais de terror. Revertendo a idéia aristotélica da catarse (que possui natureza sociológica e médica), Macbeth, que faz com que Crime e Castigo ultrapasse o ponto de nos deixar deprimidos, enquanto vivemos aquele inóspito verão em Petersburgo, no qual o pesadelo fantasmagórico se transforma em realidade. Todas as paredes parecem pintadas de um tom mórbido de amarelo, e o horror de uma metrópole moderna é retratado com uma intensidade que faz lembrar Baudelaire, ou Dickens, nos momentos menos afáveis. Chegamos a sentirCrime e Castigo — torna-se: o que leva Raskolnikov a se tornar um assassino? O personagem tem uma série de qualidades positivas; no fundo, seus impulsos são decentes, verdadeiramente, humanos. Espanta-me a noção do eminente romancista contemporâneo italiano Alberto Moravia, de que Raskolnikov seria um precursor dos comissários de Stalin, mais conhecidos como opressores de terceiros do que como indivíduos propensos à auto-recriminação.precede os crimes por ele cometidos. Duvido, porém, que ele encarne uma versão grosseira da vontade de sofrer constatada em Sônia. Tampouco é Raskolnikov um duplo, passivo, de Svidrigailov, cujo sadismo malévolo é um véu que encobre o “Para a América” — ou seja, o suicídio. É, praticamente, impossível separar Raskolnikov de Dostoiévski, que, aos vinte e oito anos, esteve oito meses encarcerado em cela solitária, por pertencer a um grupo político radical. Condenados à morte, Dostoiévski e companheiros chegaram a se ver diante de um pelotão de fuzilamento, recebendo a comutação da pena na última hora. Seguiram-se, então, quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, período em que Dostoiévski se tornou um reacionário consumado, além de monarquista, e devoto seguidor da Igreja Ortodoxa Russa.crimes, e o tribunal tê-lo considerado, pelo menos, em parte, mentalmente desequilibrado, especialmente nos momentos em que cometera os assassinatos. Não consigo ver como um leitor comum, de mente aberta, poderia definir, com um mínimo grau de certeza, a motivação das transgressões de Raskolnikov, no sentido corrente da palavra “motivação”. A perversidade, tão arraigada em Svidrigailov, lago e Edmundo, ocupa pouco espaço nas psiques de Raskolnikov e Macbeth, o que torna a queda desses personagens ainda mais aterrorizante. Tampouco adianta-nos procurar em Raskolnikov e Macbeth indícios do Pecado Original. Ambos sofrem de uma imaginação intensamente profética. Quando se vêem frente a uma ação que lhes oferece a possibilidade de ganho pessoal, atiram-se a ela, imaginam ter cometido os crimes, e sofrem da culpa decorrente. Quando a imaginação é assim tão intensa e a consciência tão culpada, o assassinato,Crime e Castigo não deixa de ser um tanto tendencioso, falha sempre presente em Dostoiévski, autor aguerrido, cuja perspectiva contundente fica sempre explícita em tudo aquilo que escreve. Seu propósito é soerguer-nos, como Lázaro, do nosso niilismo ou ceticismo, e converter-nos à Ortodoxia. Eminentes escritores, como Tchekhov e Nabokov, não o toleravam; para tais escritores, Dostoiévski não era um artista, mas um pseudoprofeta de voz estridente. Do meu ponto de vista, Crime e Castigo, a cada leitura, é uma provação, de uma intensidade terrível, e um tanto perniciosa, como se fosse um Macbet composto pelo próprio Macbeth. Raskolnikov nos magoa porque não conseguimos dele nos livrar. Sônia me parece bastante intolerável — nem mesmo Dostoiévski foi capaz de criar um santo que fosse racional. Sônia me faz estremecer. Mas é extraordinário que Dostoiévski nos tenha oferecido dois personagens coadjuvantes tão expressivos como Porfírio, o inspetor de polícia que se torna grande antagonista de Raskolnikov, e Svidrigailov, figura extremamente plausível, dotada de um charme infindo. Porfírio, experiente investigador, é uma espécie de pragmatista, um utilitário que acredita na possibilidade do bem maior, para a maioria, através do exercício da razão. Suponho que qualquer leitor, inclusive eu, haveria de preferir a companhia de Porfírio à do perigoso Svidrigailov para um jantar, mas acho que Dostoiévski preferiria Svidrigailov.
É essa sublimidade terrível, comparável à de
que na Petersburgo de Raskolnikov, assim como na Escócia enfeitiçada de Macbeth, nós também talvez fôssemos capazes de cometer assassinatos.
Subitamente, a questão — como ler
Raskolnikov, assim como Svidrigailov, sua paródia demoníaca, é dado à autopuni-ção, e seu masoquismo é absolutamente incompatível com o desejo expresso de ser um Napoleao. Em certo sentido, Raskolnikov mata para descobrir se, na verdade, é um Napoleao em potencial, embora tudo o leve a crer que ele esteja muito longe disso. Talvez o sentimento mais profundo de Raskolnikov seja a culpa atroz, que
Raskolnikov é recolhido à Sibéria durante sete anos, sentença leve para alguém que cometeu dois assassinatos; o atenuante é ele ter confessado os
em si, não passa de uma cópia, uma repetição, um ferimento que dilacera a
realidade, ainda que apenas para completar algo que, de certo modo, já foi feito.
Por mais envolvente, o romance
O senhor não pode passar sem nós.
— E se eu fugir? — perguntou Raskolnikov com um riso estranho.
— Não foge. Um mujique fugiria, um revolucionário vulgar fugi ria porque tem um credo para toda a vida. Mas o senhor já não crê na sua teoria: que levaria se fugisse? Ademais, que existência ignóbil e odiosa a de um fugitivo! Fugindo, voltaria por sua própria vontade.
senhor não pode passar sem nós—, a vela falando àOsPossessos). Svidrigailov é personagem tão forte, e tão estranho, que chego quase a voltar atrás na minha afirmação quanto à tendenciosidade de Dostoiévski. Raskolnikov confronta Svidrigailov, que persegue Dunia Romanovitch, que está se enfurecendo; não há necessidade! Como o senhor sabe, tudo não passou de uma bolha de sabão. (Diabos me levem! como estou bebendo vinho!) Desde o começo lamentei que sua irmã não tenha tido o destino de nascer no século II ou III de nossa era, como filha de um príncipe reinante ou de algum governador ou procônsul na Ásia Menor; sem dúvida alguma seria uma daquelas que enfrentaram o martírio, teria sorrido quando lhe dilacerassem seus seios com tenazes em brasa, e por seus próprios pés teria enfrentado o martírio. E no século IV ou V, ter-se-ia refugiado nos desertos do Egito para lá ficar trinta anos, vivendo de raízes e de êxtases. Ela tem loucura por sofrer por quem quer que seja e não conseguindo é capaz de se atirar de uma janela.
Temos aqui, merecidamente, um momento clássico da história do “romance policial”. O que poderia ser mais sutil do que as palavras de Porfírio — O
mariposa? Em momentos como esse, percebemos que o grande Tchekhov se equivocara; é perigoso subestimar Dostoiévski, mesmo quando a sua obra desagrada.
Mais perigoso, e ainda mais memorável, é Svidrigailov, niilista autêntico, ponto final do que poderia ser chamada a avenida shakespeariana em Dostoiévski (juntamente com Stavrogin, em
Raskolnikov, irmã do protagonista. Eis Svidrigailov, discorrendo sobre a mulher que sempre o rejeitará:
Com toda a aversão natural de Avdotia Romanovna e a despeito de meu aspecto invariavelmente sujo e repulsivo — ela acabou tendo pena de mim, pena de uma alma perdida. Quando o coração de uma jovem sente compaixão, é mais perigoso do que qualquer outra coisa. Ela passa a querer “salvá-lo”, chamá-lo à razão e o levanta e encaminha a nobres objetivos recuperando-o para a vida nobre e útil — sim, todos nós sabemos até que ponto esses sonhos podem ir... Vi, imediatamente, que o passarinho estava pronto para cair no alçapão; eu também estava pronto. Percebo, Rodion
Os Possessos, é absoluta, e, absolutamente, aterrorizante. Raskolnikov jamais se arrepende, embora no Epílogo ele se entregue à santidade de Sônia. Mas é Svidrigailov, não Raskolnikov, quem escapa da contundente ideologia de Dostoiévski, e quem, na verdade, escapa do livro. O leitor pode dizer com seus botões — “Svidrigailov vive” —, embora não saísse a pichar a frase nas paredes do metrô.
Depois que fracassa a tentativa de Avdotia Romanovna (Dunia Raskolnikov) de matar Svidrigailov (algo que ele desejava, ainda mais ardentemente do que a ela), Svidrigailov parte “para a América” — suicidando-se. A liberdade de Svidrigailov, como a de Stavrogin, em
Obs.: indico a edição da Editora 34, com tradução do Professor Paulo Bezerra. É a única tradução diretamente do russo para o português - as demais são feitas do francês. É uma excelente edição!
Nenhum comentário:
Postar um comentário