Para evocar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e o 67.º Aniversário da Libertação de Auschwitz (27 de janeiro de 1945), disponibilizo o conto Memórias de Auschwitz, de minha autoria, o qual faz parte da obra "Contos que Machado de Assis e Jorge Luis Borges Elogiaram".
Conto: Memórias de Auschwitz, de Raphael de Oliveira Reis
Ao levantar pela manhã, inquieto, fez reflexões sobre a consciência divina. Pensava que poderia ser acessada, embora não soubesse como. Aquilo lhe consumia grande tempo e energia.
Penso que se fosse possível seria algo extraordinário, pois ela é a única a organizar na memória passado, presente e futuro. Ou seja, sabe exatamente o que aconteceu, o que acontece e o que vai acontecer.
Deste fato perturbador, o homem concluiu algumas premissas que não levam absolutamente a nada, mas tenho que colocar por escrito para ser fiel ao pensamento dele. São elas: 1º) se Deus já sabe o que vai acontecer no futuro, os homens não possuem liberdade, livre arbítrio; 2º) se Deus não sabe o que vai acontecer no futuro, então ele não está no tempo e muito menos é onipresente; 3º) se o futuro lhe é reservado, todavia não pode intervir no que já aconteceu, mesmo que isso não tenha ainda se concretizado na temporalidade do presente; 4º) porque deixar os seres humanos fazer tantas coisas catastróficas, mesmo já sabendo que eles farão? Talvez porque já conheça a natureza do homem, imperfeita; 5º) mas se a natureza do homem foi Deus quem criou, seria Deus imperfeito?
Caro leitor, paro por aqui porque tais reflexões são premissas sofistas que não permitem conclusões e pouco me agradam. Deixo as reflexões deste homem, assim como meus pensamentos a respeito para outra hora e ocasião.
O que é oportuno dizer é que após abandonar as reflexões deste homem inquieto, fui até o seboQuarup, na Rua Padre Café, comprar um livro qualquer para leitura de férias. De férias, porque nesta ocasião a leitura é diferente; é feita por divertimento, lazer, sem obrigação.
Ao chegar ao dito sebo, o vendedor, infelizmente, me reconheceu tinha acabado de publicar um livro de Contos intitulado Contos de um Palimpsesto. Digo infelizmente pelo fato dele querer conversar sobre vários autores, como se eu os conhecesse profundamente. Resultado: saí do sebo com o volume I d' As Mil e Uma Noites.
Mas não é este o fato mais interessante. A compra me custou meros R$ 5,00; uma leitura deliciosa e um documento raríssimo- que estava perdido em uma das folhas – nem imagino como foi parar ali. Era uma carta manuscrita, em alemão, de um dos sobreviventes do Campo de Concentração polonês, Auschwitz, contando a história de dois irmãos judeus naquele campo.
Devido ao fato de somente eu ter este manuscrito, e não vendê-lo por nada deste mundo, – às vezes penso doar para algum museu. No entanto, enquanto ainda não faço isso, revelo algumas informações.
* * *
Em 1943, a família de tradição judaica foi levada em nome da superioridade da raça ariana, do preconceito, pela culpabilidade do desastre da 1º Guerra Mundial, ao Campo de Concentração de Auschwitz (Polônia), após uma tentativa de fuga na fronteira com a Hungria. Foram levados pelas tropas nazistas até Auschwitz I. A viagem foi cansativa, não menos cansativo o que estaria por vir. Ao chegarem à entrada, o portão principal continha o seguinte inscrito:Arbeit macht frei ,ou seja, o Trabalho Liberta – somente as pessoas que passaram por ali sabem o real significado dessa frase.
A Família de quatro pessoas: os pais Aron Veil e Anne Veil e os filhos Schumel Veil, 12 anos e Muller Veil, 14 anos, foram identificados: cada um com seu número, uniforme listrado e cabeças
raspadas. Os pais, além de serem judeus, eram intelectuais que trabalhavam na Universidade de Berlim e eram contrários ao regime Nazista.
A família foi separada. Os filhos foram levados ao campo de Auschwitz II, conhecido como Birkernau, ficando juntos aos outros garotos, judeus e ciganos. O pai Aron Veil foi levado ao bloco 11 de Auschwitz I, o qual era destinado às experimentações e sua esposa, ao bloco 24 de Auschwitz I, onde eram selecionadas as presas mais bonitas e saudáveis para satisfazer os impulsos sexuais dos soldados. Sabendo disso, o esposo, não aguentando a separação dos filhos e o destino da mulher, na primeira oportunidade se jogou ao encontro dos arames eletrificados. A respeito de Anne, a carta não fala mais nada, só o fato de que fora levada ao referido bloco.
Quanto aos meninos, além da separação, do medo constante, os adolescentes, em sua inocência, sentiram o rigoroso frio do inverno alemão. Assustados, nunca olhavam para cima, daí só visualizarem a neve, a cerca e as botas dos soldados. Entre gritos e empurrões foram levados a uma das construções de Birkernau, uma espécie de dormitório.
Os dormitórios eram barracas feitas de madeira préfabricada. Dentro de cada barraca havia os beliches de madeira. O espaço destes era apenas o suficiente para ser ocupado por um único corpo que encontrava dificuldades para mover-se devido aos companheiros do lado.
Ao chegar a noite, os meninos trataram de arrumar um espaço para deitar. Amedrontados, nem olharam para os outros garotos. Muller, o mais velho, abraçava o irmão mais novo numa tentativa de passar segurança.
As luzes se apagaram, veio o silêncio, Schumel chorava. Muller, tentando confortar o irmão e a si mesmo, passou a lhe contar uma história, com o intuito de que o irmão dormisse. Contou certa história de um príncipe e uma raposa, obra lançada e lida por Muller meses antes de ser levado ao campo de
concentração.
Tal narração era tão envolvente que outros meninos pediram para que ele a contasse mais alto. Resultado: passaram a noite escutando a narrativa de O Pequeno Príncipe, e a partir daquele momento, foram cativados.
Pela manhã, os soldados levaram a ração. Os garotos comiam com as mãos as rações deixadas nos pratos com tamanha rapidez que dava a impressão de serem cães famintos. Depois foram levados para o campo de trabalho pelo comboio de soldados. A tarefa de Schumel e Muller era esperar outros dois colegas preencherem o carrinho de mão com areia, e depois empurrá-lo até outro ponto onde era descarregado.
Ao final do dia, já cansados pelo exaustivo trabalho, sentaram no chão. Imediatamente foram repreendidos pelos gritos e tapas dos soldados nazistas. Levantaram rapidamente e começaram de novo o repetitivo trabalho. Entenderam, então, o porquê de todos os garotos serem muito magros e comerem alvoroçadamente.
A noite chegou e como recompensa para o lazer que não tinham, os garotos pediram a Muller mais uma história que Schumel consentiu com um leve sorriso. Müller disse aos garotos:
– Vocês vão ter a melhor história do mundo, a do Cavalheiro Dom Quixote de la Mancha. Como a história era grande demais, Muller a adaptou. Levou mais cinco noites para terminá-la. Ao fim, todos o aplaudiram. O barulho foi tão grande que os soldados entraram na barraca para saber o que estava acontecendo. Ao abrirem a porta de madeira, o ruído desta alertou os meninos que imediatamente voltaram para os seus respectivos lugares.
O gosto pela história foi tanto que levou um garoto chamado Ian, de 15 anos, a pensar que era Dom Quixote. Pela manhã, Ian disse aos garotos que todos eles estavam encantados pelos soldados, por isso, estavam com as cabeças raspadas, roupas listradas e com números.
Na hora do almoço, Ian tomou em suas mãos uma pedra e, de um lugar que ninguém o via, a atirou na cabeça de um dos soldados. O sangue escorria pela cabeça do soldado, que enraivecido, procurava quem tinha feito aquilo. Como não conseguiu identificar o dono da travessura, pegou um garoto de nome Frank e lhe deu alguns socos para servir de exemplo. Ian ficou desesperado. Chorando, chegou perto de Frank e lhe pediu desculpas.
– Desculpas por quê? Foram os melhores socos que já tomei. Não me reconhece, sou o bom escudeiro Sancho Pança.
Todos sorriram. Na sétima noite, Muller, a pedido de Schumel, contou a história de Aladim. A lua clareava um pouco a choça e, com isso, podiam ver os rostos uns dos outros.
Terminada a história, Muller inovou:
– Essa pedrinha que vocês estão vendo em minhas mãos está dotada de poderes mágicos. Quem quer experimentar e realizar o primeiro desejo?
– Eu, disse Frank.
– E o que você quer, garoto Frank?
– Quero brincar de amarelinha.
– Pois bem, garoto Frank. Seu desejo é uma ordem.
Então, Muller riscou com a pedra o chão e desenhou uma amarelinha - todos se divertiram por alguns instantes.
– Eu quero ser o próximo, disse Hosberg.
Esfregou as mãos na pequena pedra e disse:
– Quero que todos sejam meus amigos para sempre.
Todos aplaudiram e consentiram num grande sim.
– Por último, quero que meu irmão Schumel faça o pedido, disse Muller. Schumel, cabisbaixo, mas esperançoso, tomou a pedra do irmão; duas lágrimas escorreram de seus olhos.
– Quero ver papai e mamãe.
O silêncio penetrou em todos. Muller e Schumel se abraçaram, caíram de joelho no chão e, abraçados, choraram longamente. Todos os outros garotos se abraçaram; caíram várias lágrimas silenciosas.
Sem mais nenhuma palavra, foram dormir.
Naquela madrugada entraram quatros soldados armados. Ascenderam as luzes e mandaram todos se levantarem – no que de pronto foram atendidos. Esvaziaram aquela choça, deixando somente 10 garotos, os mais fortes fisicamente.
Após entrarem na fila, levados pelo medo e pela sensação do que iria acontecer, Schumel deu a mão direita ao irmão, apertando-a. Antes de entrar no recinto que os soldados indicavam com as mãos, foram obrigados a se despirem. Em seguida, entraram todos por uma porta de aço. Todos os garotos olharam para os dois irmãos de mãos dadas. Encaravam Muller, na expectativa de algo.
– Não se preocupem amigos. Lembra-se de Dom Quixote? Esta é só mais uma aventura.
Os garotos se abraçaram em uma grande roda. Do teto, veio o gás Zyklon B. Do crematório, a fumaça. Da barraca ondese encontravam os 10 garotos remanescentes, a tristeza.
* * *
O autor deste relato é Frank, um dos 10 garotos selecionados naquele dia para continuar a viver, ou melhor, a trabalhar no campo. Além disso, foi o escolhido pelos soldados para conduzir os amigos até a câmara de gás. Viu tudo pela pequena vidraça da porta de aço. Após muito tempo, decidiu escrever o conteúdo que vos relatei – a carta está datada no ano de 1952. Enviou a carta a um tio que estava refugiado no Brasil.
As notícias que se tem sobre Frank é que ele ficou no campo por mais dois anos, quando finalmente acabou oencantamento, no final de janeiro de 1945. A última notícia que obtive sobre Frank foi através de uma pesquisa em jornais alemães em que ele estava presente, com seus 21 anos, na execução do comandante nazista Rudolf Hoss, em 1947, em frente ao forno crematório de Auschwitz I.
Para Rafael Laguardia
17/01/2010
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