sexta-feira, 9 de março de 2012

Monteiro Lobato e racismo


o preconceito mora ao lado do Sítio do Picapau Amarelo?


Professores debatem futuro de Monteiro Lobato após polêmica sobre racismo


Alessandra Duarte e Dandara Tinoco,

O Globo


"Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura".


É Tia Nastácia, na apresentação feita por Narizinho em "Reinações de Narizinho". É também um dos motivos que levaram o autor Monteiro Lobato a se tornar pivô de uma polêmica envolvendo Ministério da Educação, professores e pais: a grande obra da literatura infantil brasileira, criadora de todo um universo, é racista? Para profissionais de educação, esse debate pode até afetar o uso, pelos colégios, da obra de Lobato pelas futuras gerações de alunos.

Independentemente de a obra ter ou não elementos racistas, professores já afirmam que ela deve ser sempre trabalhada mostrando-se aos alunos o contexto histórico - uma sociedade com resquícios escravocratas - no qual ela foi escrita.


A polêmica começou em outubro de 2010, quando parecer aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendava que "Caçadas de Pedrinho" fosse distribuído às escolas públicas com nota explicativa sobre a presença de estereótipos raciais, que, dizia, estavam em trechos como "Tia Nastácia ( ... ) trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima".

O ministro da Educação, Fernando Haddad, rejeitou o parecer.

Semana passada, a discussão voltou, após o MEC informar que distribuirá a professores um livro que os orienta sobre como lidar com temas como preconceito - e, aí, cita Lobato.


"Podemos inferir de suas obras ( ... ) preconceitos e formas de discriminação,facilmente atribuíveis a esse momento de nossa História ( ... ). Entretanto, dizer que os livros infantis de Lobato são preconceituosos e recusá­los ou censurar passagens, em nome do combate ao preconceito, é esquecer que são ficções"


O GLOBO

23/05/11






País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Klux-Klan é país perdido para altos destinos. ( ... ) Um dia se fará justiça ao Klux-Klan; ( ... ) Tivéssemos aí uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro (sic) destroem a capacidade construtiva. - Monteiro Lobato, em carta a Artur Neiva, Nova York,1928.



O processo por meio do qual a literatura se une à política para reproduzir as estruturas de poder dominante data da antiguidade clássica. A epopeia Os Lusíadas, de Luís de Camões, serviu para exaltar e para legitimar a política expansionista lusitana do início do século XV. Não foi diferente a postura de Monteiro Lobato, célebre escritor brasileiro do início do século XX. Lobato foi ambiguamente preconceituoso pois, a despeito de seu progressismo em vários temas, defendeu a eugenia em sua correspondência pessoal e apresentou, em sua obra, reproduções da perspectiva de cunho depreciativo e subalternizante advinda da elite branca agroexportadora em relação ao negro e a sua cultura.

A literatura pode, entre as várias leituras possíveis, ser entendida como um ramo da atividade intelectual humana capaz de expor as mais profundas idiossincrasias do homem. O conceito de atividade pressupõe a existência de uma ação deliberada, objetivando o alcance de resultados. A vertente intelectual suscita a elaboração, ainda que superficial, de análises e de valorações. O fator humano, por sua vez, desencadeia uma corrente de divergências e de confluências múltiplas e, necessariamente, multifacetadas a respeito do mundo. A literatura, desse modo, pode ser definida como ação analítica e valorativa tendente a salientar divergências e, de forma concomitante, a corroborar consensos.

Reconhecimento de divergências, bem como conformação de consensos, perfazem temas da seara política, a qual pressupõe o exercício institucionalizado de poder. O cotejo dessas ilações permite afirmar que a literatura se presta a reproduzir e a consolidar mecanismos de legitimação das estruturas de poder dominante.

Monteiro Lobato, cujo nascimento no interior da elite branca agroexportadora, no final do século XIX, é de suma importância para a construção de sua identidade literária, tem seu posicionamento racista explicado, em grande medida, por essa circunstância. A literatura lobatiana, nessa perspectiva, é a instância legitimadora dos anseios colonizatórios da elite branca agrícola, maior demandante da mão de obra escrava e negra durante o Brasil colônia e Império.

O homem, embora passível de localização no espaço e de delimitação no tempo, não deve ser identificado como um mero reprodutor das contradições de sua época. Ele é, primordialmente, coautor das mudanças implementadas pela sociedade da qual faz parte durante o curso das transformações históricas e sociais. O homem participa, nesse sentido, da conformação das contradições de seu tempo, haja vista que essas mesmas contradições são consequências da própria ação do ser humano na sociedade e no mundo.

Lobato, paradoxalmente, defendeu postulados eugenistas, em suas missivas, ao mesmo tempo em que propugnou pela privatização do petróleo brasileiro e por sua eficaz exploração, sem mencionar sua iniciativa de instalação do mercado editorial no Brasil. Essa contradição de posicionamentos do escritor paulista exemplifica a idiossincrasia do pensamento humano a que se fez referência, além de demonstrar o equívoco em atribuir ao tempo histórico a razão dessa contradição.

O racismo, desse modo, não deve ser identificado como decorrente da cosmovisão de uma mentalidade presente, apenas, no tempo da literatura de Monteiro Lobato, mesmo porque é realidade que permanece na contemporaneidade, promovida pela mesma elite que, hodiernamente, se imagina não preconceituosa e formadora de opinião. Ações perpetradas no âmbito estatal tendentes a minorar as consequências nefastas da dominação cultural branca sobre a raça e sobre a cultura negras, além de bem-vindas, são imprescindíveis em um país que, como segunda maior nação negra do mundo, autodeclarada, apresenta estatísticas preocupantes quanto à inserção do negro na sociedade.


MARCOS VINÍCIUS FERREIRA DE GODOY

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