brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum cum!
E fizeram o Carnaval.
(Oswald de Andrade, em Poesias reunidas, p, 169.)
A teoria da carnavalização, criada por Mikhail Baktin, refere-se à transposição da cosmovisão carnavalesca para a linguagem literária e foi elaborada levando em conta os modelos do carnaval e da cultura popular medievais. Todavia, se considerarmos as simbologias, imagens e ações carnavalescas em seus significados (momentânea inversão de papéis, a noção de mundo às avessas, aproximação de opostos pela ruptura da hierarquia habitual), amplamente discutidos por Bakhtin, podemos, a partir deles, encontrar e compreender o uso de estratégias carnavalizadoras em um romance peruano do século XX: a necessidade de expor a miríade de vozes contrastantes e de denunciar os problemas enfrentados por uma população cotidianamente acuada pela miséria justificam a utilização da carnavalização.
(Lira Arão. Carnavalização em história de garabombo, o invisivel, de Manuel Scorza)
O Carnaval, no Brasil, é a festa do povo por excelência. Como povo deve ser entendida, necessariamente, a totalidade das mulheres e dos homens brasileiros. A despeito da pluralidade de aspectos atinentes à festa carnavalesca, em virtude da multiplicidade do povo que habita o país, verifica-se a singularidade quanto ao sentimento, generalizadamente, vivenciado durante o evento nacional. No âmbito da cultura brasileira, a extinção peremptória do carnaval representaria o desmantelamento da coesão social, dado o aspecto aglutinador ostentado pela festa popular.
A coesão social em comento, bem como a integração espacial do território, são circunstâncias extrínsecas ao fenômeno carnavalesco; ao carnaval, entretanto, são atribuídos recursos simbólicos que promovem o sentimento de comunitarismo e de pertencimento, fulcrais para a manutenção da citada coesão. Ao carnaval, nesse sentido, cabe a responsabilidade de aglutinar demandas sociais, em larga medida concorrenciais, de modo a equalizar disparidades engendradas pelas circunstâncias históricas e geográficas.
As diferenças de toda ordem, sociedade, economia, cultura, religião, território e raça, e as idiossincrasias advindas da manifestação dessas disparidades recebem nova formatação. Durante o carnaval, segundo essa perspectiva, as diferenças são revertidas, a fim de permitir ao homem travestir-se de mulher, ao proletário imaginar-se burguês, e ao negro morador de comunidade desfilar pela zona nobre da cidade ocupada pelos brancos. O fenômeno carnavalesco, desse modo, não poderia ser afastado da dinâmica sociocultural brasileira, sob pena de destruição da base social a que provê sustentação.
Gilberto Freyre, cuja obra é intitulada Casa-Grande & Senzala, de modo exaustivo, explicita o cabedal teórico referente à miscigenação das três raças, ameríndia, branca e negra, na formação do povo brasileiro. Com o advento do Modernismo, Oswald de Andrade, a seu modo, propõe a invenção de uma literatura genuinamente brasileira por meio da justaposição de palavras e de sons oriundos dos idiomas das três raças que formam o Brasil.
A literatura provê exemplos da relação estreita existente entre carnaval e cultura no âmbito de produção artística brasileira. Clarice Lispector, em seu conto “Felicidade Clandestina”, apresenta uma protagonista cuja epifania é desencadeada no momento em que recebe uma rosa durante uma festa de carnaval. A autora, certamente, sabia do poder aglutinador do carnaval e do impacto que a cena descrita revela, ao ambientá-la durante a festa carnavalesca. A pintura, a seu turno, também integra o ramo artístico envolvido com o fenômeno carnavalesco brasileiro. Tarsila do Amaral, em seu quadro “Carnaval”, apresenta a mais famosa torre francesa, transfigurada por adornos carnavalescos, rodeada de negros brasileiros em contemplação. A escolha pictórica da artista reforça o poder da temática carnavalesca no ideário cultural brasileiro.
Resta comentar a teoria da carnavalização de Bakhtin. Conforme aventado pelo filólogo russo, acredita-se que a transposição da carnavalização para a literatura, do grotesco, da ironia, do estapafúrdio, como fez Oswald em “brasil”, presta-se a um fim colimado e específico: a subversão momentânea da ordem, durante o carnaval, para garantir a manutenção da ordem no porvir. Consoante essa interpretação, negar o carnaval ao povo brasileiro poria em risco a continuidade da ordem social estabelecida.
A coesão social brasileira, bem como a carnavalização na literatura e oturas formas artísticas, estão, desse modo, inter-relacionadas. A aglutinação de valores brasileiros perpassa a coexistência durante o carnaval, sendo essa festa expoente máximo da miscigenação étnica e da manutenção da ordem social.
Marcos Vinícius Ferreira de Godoy
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