sábado, 25 de fevereiro de 2012

Modernismo e Raça Negra

O flautista, Portinari














Marcos Vinícius Ferreira de Godoy

A literatura e a pintura, desde o século XVIII, retratam o negro como incontestável integrante da história brasileira. O negro figura como personagem na literatura desde o Romantismo de Castro Alves em seu “Navio Negreiro”, bem como aparece nas gravuras de Debret do início do século XIX, durante o contexto da Missão Francesa contratada por Dom João VI. O modo pelo qual as artes literária e pictórica retratam o negro se mostra particularmente especial no advento do Modernismo, no início do século XX. No contexto da realidade social brasileira no início do século XX, o negro não havia logrado rechaçar, como ainda não o fez, as desigualdades sociais engendradas pela sua condição prévia de cativo, recém-liberto a partir da assinatura da Lei Áurea em 1889. Da confluência dessas observações pode-se afirmar que o movimento modernista dos anos de 1920, além de ter contribuído para maior distanciamento entre a realidade social e a arte no período, não foi capaz de sequer mitigar as barreiras do preconceito racial no Brasil.

Verifica-se, no conjunto das obras do período, a caricaturização do negro, atitude essa discrepante das intenções de criação de uma identidade esteticamente genuína da realidade brasileira, conforme propalado no Manifesto Antropofágico de 1928. Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, primeiro negro na formação étnico-cultural do Brasil, é um tipo preguiçoso, consequência da escassez de água limpa para purificação de sua raça. Pode-se dizer que muito pouco da condição social do negro havia mudado desde a edição da lei de abolição da escravatura, havendo críticos que afirmam a ocorrência de depreciação das condições gerais de vida em função do abandono disseminado da população negra e sua substituição pela mão de obra imigrante. Em decorrência desses dois fatores, a caricaturização do negro pelos modernistas e sua estagnação social, outro aspecto, cuja ênfase se assenta na desconexão entre realidade social e produção artística modernista, surge com expressivo vigor.

O Modernismo, cuja origem foi em São Paulo, representa a associação de uma seleta elite intelectual abastada e branca, patrocinada pela economia em desenvolvimento do café. Para que a realidade social do negro fosse devidamente retratada pela arte de seu tempo necessário seria que aqueles artistas tivessem algum grau de identificação com o tema a ser representado. Não foi o que ocorreu. Partiram de uma idealização equivocada da realidade fundamentada em valores não compartilhados por classes sociais muito distantes entre si. Os modernistas retomaram a exaltação da cor local romântica, presente na supervalorização do ameríndio na prosa de José de Alencar, com o mesmo viés idealizante e desconexo da realidade vivida pelo destinatário dessa idealização.

As intenções aventadas pelo Modernismo em seu manifesto restaram frustradas quando, na tentativa de criação de uma arte genuinamente brasileira, as formas estrangeiras vieram a ser reproduzidas com a adição de elementos da cultura doméstica. O Modernismo poderia ser desse modo caracterizado antes como uma arte de transição, sem engajamento social ou sem compromisso com a realidade social. Não se debruçou, por sua vez, sobre as condições de posicionamento do negro na realidade social brasileira.

Preferiu-se, a despeito dos postulados de criação da brasilidade estética, a reprodução de antigas fórmulas artísticas com a inclusão de novos elementos, alçando o negro à categoria de objeto de arte, desconectado de sua relevância para a composição do tecido social brasileiro. Possivelmente, o distanciamento entre a arte e a realidade social perpetrado por meio do Modernismo contribuiu para a camuflagem do preconceito racial no Brasil, ao caricaturizar o negro como figura arquetípica, ao invés de apresenta-lo como um agente relevante na história do país.

Diante da inaptidão do movimento modernista em retratar, fielmente, o negro no espectro social brasileiro, resta a constatação de que a conexão entre arte e realidade perfaz ideal de difícil alcance. Necessário se faz que a produção artística se comprometa a obter um maior grau de engajamento com as realidades múltiplas que a rodeiam, permeável a suas tribulações e idiossincrasias. Sem essa perspectiva, a arte rende-se tão somente aos caprichos da forma, atividade-meio sem colimação de fins mais legítimos e auspiciosos.


Mestiço, Portinari

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