segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Entrevista com o Profº. Drº. Jesse Souza, concedida ao Jornal Tribuna de Minas

A tão badalada nova classe média trabalha até 14 horas por dia, é explorada e não tem todas as vantagens típicas de uma classe média estabelecida. A opinião é do professor Jesse Souza, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e coordenador do Centro de Pesquisas sobre Desigualdade da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). O assunto é tratado em seu mais recente livro, lançado em novembro pela Editora UFMG e resultado de pesquisa encomendada pela Secretaria de Estudos Estratégicos do Governo Federal, "Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe média trabalhadora?". Em seu apartamento no Bairro Cascatinha, ele falou à Tribuna também sobre as classes mais populares, tratadas na obra "A ralé brasileira", e que segundo ele, originaram parte da nova classe média brasileira.
 
Tribuna - O seu primeiro livro trata das classes mais populares. Por que o senhor usa o termo ralé?
Jesse Souza - Chamei assim para ser provocativo. Fizemos um estudo, realizado por uma equipe com 11 alunos doutorandos e mestrandos da UFJF. Trabalhamos quatro anos no projeto. Esta pesquisa mostrou a natureza e a especificidade desta classe de abandonados entre nós. Nas entrevistas nas casas de pessoas que diziam não ter capacidade de se concentrar, encontramos um pai brincando com o filho com um carrinho de mão, ensinando-o a ser um trabalhador manual. Enquanto na classe média, o pai está lendo um livro ou um jornal, e a mãe, contando história. Vimos que a capacidade de se concentrar é um atributo de classe. A ralé não foi ensinada a se concentrar pela transmissão silenciosa, mas que é muito mais profunda e eficiente. Se uma criança é estimulada à leitura, a ouvir história, ela vai chegar na escola vencedora. E a escola vai exigir dela exatamente o tipo de disposições para o comportamento de disciplina, autocontrole, pensamento prospectivo, imaginação. Ela chega na escola já com estas disposições prontas, como vencedora. Na ralé é o contrário, as crianças chegam como perdedoras. A escola só vai dar o carimbo depois: "você é burro e preguiçoso". Nós encaramos a disciplina e o autocontrole como dados naturais. E isso é errado. Todas as ciências dominantes repetem esse erro, pois são ciências do poder. Constatamos que a falta da escola vai caracterizá-los. A sociedade está dizendo que esta classe é "perdedora e burra" por culpa deles. Como a gente já fez com os negros. É muito mais fácil perceber esse tipo de coisa em relação à diferença étnica do que à diferença de classe. Assim, somos uma sociedade que nunca assumiu e nem assume a responsabilidade de ter construído uma classe que é destinada ao abandono.

Tribuna: Qual a relação entre essas duas classes, a ralé e a classe média?
Jesse de Souza: No Brasil a gente tem uma tendência, que é extremamente conservadora, de uma sociedade que se imagina humana, amiga, gente boa, mas que, no fundo, é perversa e má. E eu digo má por ser uma sociedade indiferente à dor e ao sofrimento alheio. A gente não compreende a nova classe média sem referência ao tema da ralé. A ralé é uma classe extremamente numerosa, que engloba 1/3 da população do país, e são as pessoas que normalmente têm menos capital cultural e menos capital econômico. Quem tem capital cultural (escolaridade e acesso a bens culturais) e capital econômico vai ter acesso a melhores salários, a mais reconhecimento, a mais prestígio. Toda a malha de relações sociais é pré-decidida pelo acesso privilegiado de alguns ao capital cultural e econômico. Eles são os mais importantes na sociedade moderna e capitalista, porque Estado e mercado precisam deles para funcionar. Politicamente ninguém percebe a ralé, nas últimas campanhas eleitorais ninguém falou nisso, falou-se do Bolsa Família, mas não se tematizou a ralé. Este assunto nunca é tocado, porque a esfera pública brasileira é montada conservadoramente. Então, cria-se um tipo de oposição que é falsa, superficial e infantil entre Estado corrupto e ineficiente e mercado virtuoso. Não que o mercado seja pior ou melhor que o Estado, mas a última crise mostrou que as fraudes do mercado são planetárias. Você maquia balanços de países inteiros para ganhar dinheiro. Para ganhar mais dinheiro, o mercado faz o que quer. Só que essas pessoas, depois, nos jornais, saem como gênios da finança e não como ladrões ou corruptos. São dois pesos e duas medidas. Esse tema do Estado versus mercado no Brasil domina todo o debate público, fazendo uma polarização, dizendo que o Estado é patrimonial e ineficiente em si. Aqui tem uma classe média que se completa do trabalho barato dessa ralé - babá, porteiro, motoboy, empregada doméstica, para se dedicar a empregos vantajosos e prestigiosos, e isso não é percebido, sequer, como luta de classe.

Tribuna: O senhor disse que era mais crítico em relação ao Bolsa Família antes, por quê?
Jesse de Souza: Minha crítica é porque eu acho, por exemplo, que só esse tipo de ajuda financeira, mesmo que seja vinculada à ida das crianças para escola, claro que é bom, mas não é suficiente para que a ralé deixe de ser ralé. Embora pense que seja um mérito do Governo Lula. Estou convencido de que se Lula tivesse apenas mantido a taxa de crescimento econômico sem ter feito nada pelas classes mais pobres, ele teria mais votos. O preconceito não é contra o nordestino. O que está por trás da imensa maioria dos preconceitos, fora o de gênero, é o preconceito de classe. Ser contra o Bolsa Família é burrice, pois ele tem dinamizado o mercado interno brasileiro, especialmente, estas novas chances abertas por aquela que estamos chamando de nova classe média, pois foi criada uma demanda que antes não existia. Ninguém diz nada sobre o Brasil ter gasto muito mais do gasta com o Bolsa Família para sanear os bancos, ninguém achou isso errado. Agora, quando se pega 0,5% do PIB e dá aos pobres, cria-se uma "grita" enorme.
- O mercado tem valorizado muito a nova classe média. Como o senhor encara esse movimento?
- Precisamos definir a nova classe trabalhadora sem o triunfalismo que as pessoas têm colocado, como a ideia de que o Brasil está virando uma nova França ou uma nova Alemanha. Não há problema em querer. O problema é manipular, pois estamos muito longe disso. A ideia da classe média com cem milhões de pessoas serve para quê? "Já estamos no Primeiro Mundo". É uma mentira e não é um mero efeito do crescimento econômico. O Brasil já teve um crescimento econômico dessa monta, durante 50 anos, de 1930 a 1980, e não eliminou esta classe e esta desigualdade grave. A economia é o único aspecto visível, pois todos os outros são invisíveis. Por isso, fiz aquela ênfase toda na transmissão dessas disposições afetivas e emocionais e, depois, elas vão influenciar se a pessoa terá acesso ou não as bons empregos, salários, prestígio e reconhecimento. Isso é importante ter essa noção, porque, senão diremos coisas que muita gente boa fala, como "a escola resolve tudo". De que forma, se a ralé já chega na escola como perdedora? Essa classe está sendo construída há séculos e nunca foi vista, mas é mantida e negada até hoje. E não é um governo político corrupto em Brasília não, somos nós que reproduzimos isso quase todos os dias a cada instante. Está na hora de assumir esta responsabilidade e não infantilmente botar a culpa sempre nos outros, numa elite encastelada.

Tribuna: Como o senhor caracteriza esses novos trabalhadores?
Jesse de Souza: A nova classe trabalha em condições muito mais difíceis do que a classe trabalhadora anterior, ao mesmo tempo que tem mais chance de se tornar efetivamente um pequeno empresário. Existe um ambiente para que esse tipo de coisa aconteça, mesmo que a maior parte não tenha esta história de sucesso. É uma faixa pequena da ralé, uma espécie de elite da ralé, uma pessoal que nasceu em uma família estruturada. As famílias da ralé têm sua mãe, vários homens, e a taxa de abuso sexual nas famílias mais pobres é imenso. Ainda assim tem uma parte deles que pode reagir, desde que tenham os meios. Parte dessa ralé compõe a nova classe trabalhadora, que também é composta por jovens que entram no mercado, parte da pequena burguesia etc. O que esse pessoal não tem, ao contrário da classe média efetiva, é o capital cultural na mesma medida. Elas não podem dedicar o seu tempo, e o tempo é importante para o privilegiado. Quem é privilegiado tem à sua disposição o recurso mais escasso e valioso, que é o tempo. Essa nova classe trabalhadora não tem acesso ao tempo. Ela trabalha de 10 a 14 horas por dia, é explorada, estuda no período da noite e trabalha de dia. Ela não tem todas as vantagens que são típicas de uma classe média estabelecida. Mas, agora, tem acesso um certo consumo que antes não tinha.

Carla Duailibi
Editora

Fonte: http://www.tribunademinas.com.br/economia/eco10.php. Acesso: 03/01/2011

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