domingo, 18 de dezembro de 2011

DIÁRIO DE MARIE CARDONA - Pauliane Godoy


 Argélia, 10 de junho de 1941.

            Há uma semana Meursault foi executado. Sinto-me perdida. Não consigo entender como ele pode deixar isso acontecer.
            Quando penso em quando o conheci percebo que sua liberdade foi algo que me despertou. Penso que ele era livre, pois não importava-se em ser “correto”. Esse termo é muito complexo, talvez a sua não convencionalidade fosse sua autonomia, e isso me surpreendia. No tempo em que trabalhei com ele no escritório pude sentir esse sentimento crescer e isso é maior do que eu possa definir.
            Meursault, de alguma forma, mostrava-se também interessado por mim, mas definir o que ele sentia sempre foi indefinível. Devo confessar que inúmeras vezes eu ficava triste com a forma como ele se comportava (creio que esse termo não possa ser adequado a ele).
            Às vezes era muito estranho achar que ele estava comigo só porque eu era sua amante. Será que eu era apenas um objeto de seu desejo? Eu queria ser mais; eu queria estar ao seu lado como sua esposa.
            Depois que a sua mãe morreu essa vontade cresceu, pois eu achava que ele gostaria de ter uma companheira. Eu achava que seria muito estranho mencionar esse assunto depois do ocorrido, já que sua perda havia sido recente. Apesar de nunca ter conhecido a mãe dele, para mim a perda de alguém tão próximo abalaria qualquer um. Mais uma vez Meursault me surpreendeu. Não demonstrou sofrimento algum, pelo menos da forma que eu esperava. Apesar de achar seu “não sofrimento” estranho, como tratava-se do Meursault, eu pensava que ele não gostaria de demonstrar seus sentimentos.
            Eu tentava entendê-lo. No seu julgamento levaram em consideração o fato dele não ter demonstrado sentimentos (que seriam esperados por todos) no velório de sua mãe. Meursault não se defendeu. Por quê? Como ele pode ficar tão passivo diante de tais questionamentos? Como podemos julgar a forma como alguém demonstra ou não os seus sentimentos?
            Talvez fosse de sua natureza. Às vezes seu comportamento aparentemente aquém me incomodava, como no dia em que seu chefe o ofereceu uma promoção em seu emprego e ele disse: “tanto faz”. Além disso, quando eu o perguntei se gostaria de casar comigo ele disse que sim. Fiquei muito feliz, pois para mim aquilo era o sinal de que eu era importante para ele. Quando o perguntei se me amava ele disse que não. Fui mais longe e o questionei como poderia casar-se comigo se não me amava e ele afirmou: “tanto faz”. Como assim “tanto faz”? Naquele dia eu morri um pouco. Na realidade, a minha relação com o Meursault era um morrer e nascer a cada dia. Mas mesmo assim eu o amava. Mas eu não pude me casar com ele.
            Eu nunca gostei do Raymond. A forma como ele tratava as mulheres me incomodava e eu não gostava da relação do Meursault como ele. Parecia que eu presentia o que aconteceria naquele dia na praia; o dia em que Meursault matou o árabe e abriu a porta do seu inferno.
Eu acredito que realmente o calor o desorientou, mas ninguém mais acreditava e o que eu poderia fazer para ajudá-lo?
            Na prisão ele mantinha uma postura apática diante da situação. Ele não lutou por sua vida. Mesmo diante do meu sofrimento ele não parecia importar-se comigo. Parecia que não sentia minha falta. Será que ele tentava me proteger? A cada vez que o via no tribunal sofria por sua ausência ao meu lado.
            Creio que ainda é cedo para que essa dor cesse. A dor da ausência ainda é muito recente. Confesso que nunca o entendi verdadeiramente. Talvez ele mesmo não se entendesse e sentia-se um estrangeiro nesse mundo. Mesmo diante dos últimos acontecimentos eu continuo o amando e o admirando, pois penso que na verdade ele nunca foi respeitado por não se conectar ao mundo.

Pauliane Godoy - 17 de Dezembro de 2011     

Um comentário:

  1. Certamente, o gênero mais criativo entre os realizados pelo grupo, além de dar voz a uma personagem antes secundária, agora principal.

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